quarta-feira, maio 19, 2010

O Encrenqueiro


Quando conheci o Eduardo na boate Gaivotas nos anos 90, terminamos a noite dentro do seu carro conversando perto de um trailer no via onze na Barra da Tijuca. Naquele tempo a noite terminava naquele trailer, o único aberto para o último lanche antes de voltar para casa. Conversávamos de mãos dadas dentro do carro. Era um tempo que não havia insufilm, mas já havia pitboys. Também não eram dias onde qualquer cidadão andava armado. Portanto, quando esses pitboys começaram a fazer piadinhas conosco, eu sai de dentro do carro já tomando satisfação. Claro que não eram pitboys como os de hoje, nem marombados e muito menos unidos e tampouco corajosos. Assustaram-se com um simples “qual é o problema?”. Acho que não acreditaram que eu pudesse fazer aquilo. Felizmente não passou disso. Pior foi voltar para o carro e ver a cara assustada do Eduardo e ouvir pela primeira vez me chamando de encrenqueiro. Edu era tímido e ao invés de me ajudar ou me parabenizar pelo ato heróico, me chamou de encrenqueiro. Eu querendo impressionar o cara que havia acabado de conhecer e ele me chamando de encrenqueiro. Claro que terminamos rindo daquela situação toda. Mas repetiu por toda a nossa vida essa palavra quando eu agia mais exaltado para resolver certos problemas. Com o tempo a palavra foi encurtando ao ponto de inventar outra para esses momentos. Dizia “Já vai crencar”? (saudades de ouvir essas palavras que ele inventava para mim).

Eduardo não gostava de brigas, discussão ou bate bocas. Estava certo, era um lorde, eu um plebeu. Claro que com o tempo ele até aprendeu a se exaltar e me surpreendeu várias vezes quando passou a brigar pelos seus direitos, mas no início, essa briga ficava somente para o encrenqueiro. Quando achava que um problema fosse complicado para resolver, preferia que eu fizesse. Quantas vezes tive que me passar por ele, pelo menos via telefone, para resolver esses problemas mais difíceis que sabia que ia ser longo e provavelmente seria necessário um bate boca. Cancelamento de cartões, faturas cobradas indevidamente, compras efetuadas e nunca entregues, troca de produtos com defeitos, enfim, problemas do dia a dia que ele preferia que eu resolvesse porque sabia que mesmo por meios tortos, iam ser solucionados mais rapidamente. Um dos últimos problemas que resolvi foi conseguir tirar no prazo de um dia seu material para biópsia quando o laboratório dava sete dias para essa retirada. Não tínhamos esse tempo de espera e já havia até um esquema todo montado para acionar a justiça se preciso fosse. Como sempre, ele confiou em mim para essa tarefa e não o decepcionei. Em menos de 3 horas havia conseguido que trouxessem o material de Caxias para Copacabana. E o melhor, dessa vez sem brigas. Havia momentos em que eu sabia ser um bom encrenqueiro.

O engraçado é que essa palavra nunca foi dita de forma que eu me sentisse o cara que criava confusões, o problemático ou briguento. Vinha sempre com o seu sorriso de aprovação para minha atitude. Ele gostava desse meu jeito. Era compreensivo demais para criticar esses gestos. E para ele, não importava os meios porque o importante era que eu resolveria, sempre que precisasse. E eu gostava quando me pedia ajuda para resolver esses assuntos que ele não gostava. Se pudesse tirava todos os problemas da vida dele, eu sempre queria vê-lo bem e feliz então, se esses assuntos o aborreciam, eu tratava logo de resolver para deixa-lo contente.

Sou uma pessoa tranquila, mas realmente não gosto de injustiças, seja ela qual for. Não consigo ver coisas erradas que se puder me intrometo mesmo. Parei com isso certa vez porque fui me meter no meio de uma briga entre um jovem que batia no seu cão com um pedaço de madeira. Além de me xingar o rapaz me ameaçou bater com a mesma madeira. Assustei-me porque os anos já haviam mudado. A partir desse momento passei a tentar resolver somente os assuntos que nos dizia respeito. Minha fase de justiceiro acabou ali.

O tempo foi passando e tudo mudando junto. Alguns avanços, algumas conquistas, mas as injustiças continuam por ai. No final de semana, estava encantado com a apresentação de um grupo de adolescentes encenando um musical da Disney na praça de alimentação do shopping Barra World, quando atrás de mim ouvi comentários agressivos e ofensivos a um dos jovens atores da peça. Uma das agressoras dizia entre outras barbaridades que o príncipe estava mais para princesa. O chamava de “bichinha novata, aprendiz de viado”, e não parava por ai. Tantas grosserias voltadas para um jovem artista que aparentava não ter mais que 15 anos. Praticamente uma criança. Não consegui ficar quieto, e todas as três ficaram paralisadas quando me virei para reclamar da maneira agressiva que falavam. No mesmo tom chamei a atenção delas que preconceito sexual é crime. E sem falar que estava atrapalhando o meu divertimento. Continuei com a minha lição de moral perguntando como reagiriam se ela, a agressora estive naquele palco representando uma princesa? Como sentiria se alguém começasse a ofendê-la dizendo que por ser negra ela não poderia fazer o papel de princesa e sim o da escrava. Claro que preferiram me xingar e foram se afastando provavelmente jogando toda sua ira em cima de mim. Essas três jovens tinham idades diferentes, aparentando variar entre 25 a 35 anos. Num primeiro momento me chocou por serem negras. Logo os negros que continuam lutando para combater o racismo. Infelizmente essas jovens não devem saber sobre a história da própria raça, além de preconceituosas eram ignorantes.

Sai do shopping bem chateado com aquela cena. Ainda bem que o jovem atacado nem chegou a ouvir as besteiras que foram direcionadas a ele. E sai pensando na minha vida. Em mim. Pensando o porquê tinha feito aquilo, se não seria melhor ter ficado calado. Talvez o jovem artista tivesse agido de outra maneira, nem dado ouvidos para aquelas pessoas tão insignificantes. Talvez fosse o certo a fazer, mas eu não sei ser assim. Esse não sou eu. Embora nunca tivesse passado por situação preconceituosa além daquela do dia que conheci o Eduardo, lembrei-me de um fato recente, onde me senti desrespeitado e humilhado. E o pior, ouvir tudo isso de pessoas que eu nunca poderia imaginar. Pessoas com quem dividi o mesmo copo de cerveja, dividi brincadeiras, passeios, festas, enfim, momentos alegres. Pessoas que me cumprimentavam com beijos no rosto. Vi olhares maldosos, me julgando e me recriminando. Chorei muito tentando entender o que havia feito para aquelas pessoas, o que havia mudado nessa relação. A tristeza aumentou quando comecei a pensar que foram momentos de mentiras. Essa relação nunca existiu de verdade. Minha dor vem daí, eu acreditava que gostavam de mim, mas apenas me toleravam. Eram sentimentos falsos e quando puderam mostrar a verdadeira face o fizeram sem a mínima sutileza. É difícil acreditar que você conviveu com pessoas que desconhecia. Fiquei triste, mas ao mesmo tempo fez ressurgir o encrenqueiro que tanto o Dr. Simonato gostava de ver. Se não fosse por ele, eu iria continuar dormindo com a mamãe e não teria tido forças para voltar para nossa casa, no dia certo, na hora certa. Tenho certeza que ele me levou de volta para casa. Pude me olhar no espelho e me reconhecer novamente. Minha atitude no shopping foi a reação que tive pela vida toda. Edu não só me trouxe de volta para a nossa casa, mas está me trazendo de volta a vida. Ainda não tenho a força do perdão dentro de mim, mas vou chegar lá. Sei que era isso que ele gostaria que eu fizesse. Vou continuar buscando entender essa situação, esvaziar meu coração de sentimentos ruins e preencher somente com os sentimentos bons. Sei que posso fazer isso. É o certo.

Um comentário:

Glaucia disse...

Obrigada por relatar como voces se conheceram (como disse, venho resgatando o amigo atraves do blog) e por se posicionar publicamente em relacao ao preconceito e às injusticas. É de encrenqueiros assim que o mundo precisa, nao dos violentos, mas dos que querem ver um mundo melhor.
Glaucia