Outro dia ouvi alguém dizer que era feliz e não sabia. Pois eu sempre soube que era feliz.
Ué, mas se vivi outras vidas, porque não me lembro delas?
De fato, nós habitualmente não nos lembramos de ter vivido antes, o que não é o mesmo que dizer que não tivemos outras existências. Podemos esquecer um presente ganho num aniversário há cinco ou seis anos e, no entanto o presente se for durável, continua por ai, provavelmente em alguma gaveta.
É bom que esqueçamos mesmo, a fim de aproveitar a oportunidade de dar início a uma existência como se estivéssemos abrindo um novo caderno de muitas folhas em branco, no qual podemos escrever nossa história. É bom ignorar que tivemos graves problemas, no passado, com a pessoa que hoje é nossa mãe, irmão ou aquela irmã mais difícil. Ou que tenha enganado vilmente a linda menina que agora é sua filha, ou ficado com a herança que, de direito, pertencia àquele genro que você não queria que se casasse com sua filha.
É que as famílias são, quase sempre, arranjos combinados no mundo invisível entre as diversas personagens de um drama ou de uma tragédia antiga, para que acertem suas diferenças pelo relógio cósmico do amor ao próximo, a fim de que todos sejam felizes um dia. Nascem ao nosso lado, ou nascemos nós juntos de adversários, vítimas ou desafetos de outrora, aos quais prejudicamos gravemente ou que nos tenham criado também dificuldades e sofrimentos, perfeitamente evitáveis, se todos tivessem agido de maneira correta. Nascem, também, é claro, conforme nossos méritos, pessoas maravilhosas, a quem amamos profundamente e respeitamos, mas isto é quase exceção, não a norma, pois não disse o Cristo que primeiro tínhamos de nos conciliar com o adversário? E que não sairíamos de lá, ou seja, do sofrimento, enquanto não houvéssemos resgatado o último centavo da dívida perante as leis do amor?
Então a família é o campo de provas, onde encontramos amigos e desafetos. Os primeiros nos trazem o gostoso refrigério de sua afeição, num relacionamento agradável e construtivo. É facílimo amá-los. Os outros, não. São pessoas difíceis, que inconscientemente guardam de nós rancores ainda não superados, ou mágoas que não conseguiram vencer. É muito mais difícil amá-los, convertendo sua atitude negativa, por nós em um relacionamento afetivo, desarmado e genuíno.
“amai vossos inimigos” disse Jesus. “Fazei o bem àqueles que vos odeiam, bendizei aos que vos maldizem, rogai pelos que vos maltratam.”
“Se amais aos que vos amam que mérito terá? Pois também os pecadores amam àqueles que os amam.”
Essa filosofia, aparentemente tão estranha, tem profundas motivações. Com aqueles a quem amamos, não há problemas a resolver. Já é nossos amigos, basta cultivá-los com carinho e respeito. Com aqueles que nos detestam, ao contrário, temos questões pendentes, ainda que conscientemente, as ignoremos. Por uma razão oculta, estamos juntos para que aprendamos a nos amar fraternalmente. E nisso lembramos, de novo, o Cristo, que nos disse outras palavras da maior importância:
“Reconcilia-te com teu adversário enquanto estás a caminho com ele”.
É certíssimo isso. Ele foi posto em nosso caminho precisamente para que nos reconciliássemos, convertendo adversário em amigo. É mais fácil realizar essa tarefa quando ignoramos as verdadeiras causas das divergências.
O esquecimento nos protege de certas angústias e evitáveis vexames. Imagina se em outros tempos tenha degolado ou envenenado a sangue frio a menina que hoje pode ser sua filha predileta? E que, aliás, nem liga para você, porque ainda guarda certas desconfianças a seu respeito? É bom esquecer mesmo, porque quando é muito grande o peso da culpa, o remorso ameaça esmagar-nos e paralisar a ação reparadora.
Bem, ai está algumas das principais razões pelas quais nos esquecemos das vidas anteriores, a fim de podermos começar outra, como se nada tivesse acontecido.
(Capítulo 14 do Livro Nossos filhos são espíritos, de Hermínio C. Miranda)
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