terça-feira, abril 05, 2011

No fundo do poço

Não cheguei ao fundo do poço, mas me identifiquei muito com a crônica da Cora Rónai, publicada no segundo caderno de “O Globo” de 31 de março de 2001. Reproduzo algumas partes aqui.

O fundo do poço é igual à boca do poço, só que diferente. No fundo do poço tudo parece continuar na mesma. Para quem está no fundo do poço, “normalidade” é um estado que não existe. No fundo do poço nada tem importância além do que realmente importa: a pedra no peito, o medo de pensar, o pavor do silêncio, a ausência de sinais de vida verdadeira.

Se há uma vantagem no fundo do poço, é a nitidez com que se percebem os sentimentos, nossos e dos outros. Amigos próximos que não dão sinal de vida talvez não sejam tão amigos ou tão próximo quanto se imagina; conhecidos distantes, às vezes até geograficamente, mostram-se surpreendentemente próximos. No fundo do poço, qualquer carinho reverbera nas paredes e, como um eco, é por elas amplificado; um abraço mais apertado, um olhar que diz “Estou aqui”, um e-mail. O silêncio, inversamente, escorre poço abaixo, como uma gosma gelada, criando dúvidas e distâncias onde, em circunstâncias normais, nada existiria.

A vida não para no fundo do poço, mas se torna bastante difícil. Acordar é uma decisão penosa, e muitas vezes inútil: acorda-se na cama para pouco depois se adormecer no sofá. Nos dias bons dorme-se o tempo todo no fundo do poço, um sono pesado e sem sonhos. Nos dias ruins quase não se dorme, porque basta fechar os olhos para que os sonhos se transformem em pesadelos. Os dias bons, felizmente, são maioria.

No fundo do poço o cérebro é, na melhor das hipóteses, um órgão inútil. Não serve para nada. É incapaz de lembrar um nome, de um número ou de tarefas a cumprir. Não consegue se concentrar o suficiente para a leitura de um livro, ou para que um filme faça sentido; no fundo do poço, um filme é apenas uma sucessão de imagens desconexas e desinteressantes, incapazes de segurar o olhar.

Nada vale a pena no fundo do poço: sair de casa, andar pela cidade, ir ao shopping, montar quebra-cabeças. Dizem que exercício ajuda, mas para fazer exercício é preciso chegar à academia, e para chegar à academia é preciso sair de casa – sair de casa sendo, talvez uma das coisas mais difíceis de executar no fundo do poço. Até encontrar os amigos é complicado, porque as conversas se tornam tão difíceis de acompanhar quanto à atmosfera feliz que costuma reger tais encontros.

Lutar contra o fundo do poço é praticamente impossível. Pode-se fugir dele por pequenos intervalos de tempo, não adianta nada, mas despista.

Só se pode ver o fundo do poço com ajuda da indústria farmacêutica. A seco, o fundo do poço aperta o coração, corta a respiração e vira um buraco negro de dimensões e conseqüências inimagináveis. Uma tarja preta bem receitada permite, porém, que se veja o fundo do poço como ele é – como se nos víssemos a nós mesmos de outro plano, outra dimensão. O fundo do poço não desaparece, mas torna-se compreensível, uma esfinge enfim decifrada.



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